Capital do caixão, em SP, rejeita crescer a partir de mortes por coronavírus

Não podemos querer que isso se concretize em vendas, pode ser que nós tenhamos que usar esse caixão, diz prefeito

Seus moradores dizem que nela ou as pessoas trabalham, trabalharam ou têm algum familiar ou vizinho atuando na produção de caixões. Com três fábricas de urnas funerárias numa cidade com pouco mais de 4.000 habitantes e uma trajetória de décadas no setor, Cabrália Paulista (a 357 km de São Paulo) ostenta o título de capital do caixão.

É uma denominação da qual seus habitantes afirmam se orgulhar, mas que não querem ver essa fama ou a economia em alta num momento em que todos os países lutam para reduzir o total de mortos vítimas da pandemia do novo coronavírus.

“Queremos o ciclo natural, não o aumento de mortes por causa da pandemia”, afirmou o empresário Nicolas Andrade Cioni, um dos diretores da D’Leoni, uma das três fabricantes de urnas da cidade e que emprega 30 funcionários.

O município, como o tamanho de sua população demonstra, é pequeno, pacato e de poucas atividades que não sejam a agricultura, as fábricas de urnas e um ou outro negócio que surgiram nos últimos anos, como uma granja e uma empresa que exporta embalagens.

Mas são os caixões a principal atividade industrial da cidade, que tem 4.264 habitantes, segundo o IBGE, e taxa geométrica de crescimento anual da população negativa entre 2010 e 2020 (-0,14%), conforme a Seade (Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados).

A estimativa é que as indústrias empreguem diretamente cerca de 150 pessoas em Cabrália, mas, além delas, há terceirizados responsáveis pela produção de partes das urnas, como forros de zinco, usados em casos de morte por doenças infecto-contagiosas, muitas vezes feitos nos quintais de casa.

Dentro das fábricas, são cenas comuns funcionários cortando as madeiras conforme a dimensão das urnas e cuidando de atividades como babados, estofamento dos caixões e fixação das alças.

“A gente diz que é uma cidade em que todos sabem fazer caixão, é uma tradição”, disse Antonio Marinho, presidente da Afub (Associação dos Fabricantes de Urnas do Brasil).

Conforme as pessoas foram aprendendo esse mercado foi se profissionalizando e hoje é composto por mão de obra muito especializada, segundo Cioni.

Na D’Leoni, surgida em 1998, a produção média diária fica entre 80 e 100 unidades, conta o diretor, que são vendidas no interior e também em estados como Pará e Rondônia, no Norte do país.

De acordo com ele, clientes pontuais solicitaram até 15% mais urnas após o surgimento de casos de coronavírus no Brasil, mas no geral a demanda da fábrica segue praticamente a mesma.

A opinião é compartilhada por Marinho, que também comanda a Godoy Santos, hoje maior fabricante do país, em Dois Córregos. “Disseram que iria crescer 50%, 60% ou até duplicar a produção. A produção cresceu sim, mas mais pelo desespero do que pela necessidade”, disse ele.

Segundo a Afub, que representa 15 fabricantes, no início da pandemia empresas do setor se prontificaram a aumentar o estoque de cada uma em até 15%. Mas Marinho afirmou que, se por um lado surgiram os óbitos por Covid-19, por outro houve redução no total de mortes em acidentes de trânsito ou mesmo em cirurgias, já que muitas não emergenciais foram desmarcadas para preservar leitos para tratar pacientes do novo coronavírus.

Honraria

Embora determinante para o título atribuído a Cabrália, esse mercado da morte já foi maior na cidade, que chegou a ter seis fábricas e produzir mais de 20 mil unidades há duas décadas. Hoje, estima-se que tenha caído ao menos 30% —os dados exatos são incertos.

Ela não é a que mais produz urnas funerárias no país, mas manteve a fama de capital devido ao tamanho de sua população e à importância que o setor tem para a economia local.

“Cabrália é um polo, hoje com empresas menores, mas importante para o setor e para ajudar São Paulo a ser o maior fabricante do Brasil”, disse Marinho.

A Godoy Santos tem capacidade instalada para produzir 15 mil urnas por mês, o que significa que, se atuar em sua condição máxima, produzirá o equivalente a 15% da demanda média mensal, que é de cerca de 100 mil caixões.

No interior, há grandes fabricantes também em Cordeirópolis e Araçatuba, diz a associação, além do Sul do país.

“O crescimento do setor é muito relativo. As taxas de natalidade e mortalidade mantêm uma certa tendência, então o que queremos é uma melhora do setor, não crescimento [em virtude da pandemia]”, afirmou Marinho.

 Dos lápis aos caixões

A fama de Cabrália surgiu ainda nos anos 70, de acordo com o prefeito José Madrigal Ruda Filho (PTB), quando dois empresários chegaram à cidade para trabalhar com pinus com o objetivo de fornecer madeira para uma indústria de lápis, mas o negócio enfrentou dificuldades anos depois.

“Meu pai [José Madrigal Ruda] era prefeito [1977-1982] e, quando o setor ficou ruim, [os empresários] montaram uma fábrica de caixões”, disse.

Segundo ele, a fama não incomoda os moradores de Cabrália e faz parte da rotina da cidade. “Fomos os maiores produtores de caixões e temos de produzir cada vez mais situações que promovam a economia local. Não queremos crescer assim [pandemia], é até uma questão de consciência, de ser humano. Não podemos explorar, querer que isso se concretize em aumento nas vendas, até porque pode ser que nós tenhamos que usar esse caixão”, disse.

E quanto custa produzir um caixão? O preço de custo médio nas fábricas é de R$ 400 a R$ 500, mas há produtos mais sofisticados que chegam a custar dez vezes mais na indústria. “Mas esses são raros”, disse Marinho.

Cabrália não tem nenhum caso confirmado ou suspeito do novo coronavírus, o que é visto como um alívio, já que a cidade não tem nenhum leito de UTI (Unidade de Terapia Intensiva). Caso alguém precise ser intubado terá de ser levado até Bauru, distante 45 quilômetros.

Para tentar coibir a chegada da Covid-19, a prefeitura está fazendo pulverizações semanais com hipoclorito em todas as vias da cidade, graças ao empréstimo feito por produtores rurais de tratores com bombas de pulverização.

Com tamanha produção de urnas, os velórios e enterros na cidade, claro, são feitos com caixões fabricados na cidade. Mas são raras as oportunidades de uso, já que o total de mortos por mês em Cabrália não passa de quatro, segundo a funerária Novo Mundo, a única local. Há casos de o município passar um mês inteiro sem registrar óbito.

  • Fonte: Marcelo Toledo, de Ribeirão Preto para Folha de São Paulo