Vida de Funerário
“Gente morta”.
Quando minha filha, de 2 anos e 1/2, me pediu para ver gente morta, no primeiro momento paralisei, no segundo lá estava eu com ela, na frente de como ela se referiu, “gente morta”. No meu colo, com um de seus braços envolto do meu pescoço, o outro apontando para tudo a sua frente, começou a perguntar:
Porque ela está deste jeito? Porque ela tá assim?
Ela vai pro céu?
Quem são estas outras pessoas que estão aqui?
O que estas pessoas estão fazendo aqui?
Você também vai morrer papai?
Eu também vou morrer?
Porque?
Depois que respondi com naturalidade e verdade (a verdade que imagino ser verdade), todas as sua indagações, ela simplesmente disse: Tá Bom.
Saímos em silêncio e só mais tarde ela falou a sua mãe que não queria que o papaizão dela morresse, porque ela iria sentir muita saudade.
Dias depois lá estava ela com uma boneca, dentro de uma caixa de sapato, dizendo que a boneca tinha morrido.
Depois deste episódio, toda vez que vou sair de casa ela me pergunta se vou voltar, quando respondo que quero voltar, ela diz: Tá Bom, o mesmo “Tá bom” que ela disse para sua primeira visão da morte, então volta a brincar e a vida a seguir seu curso, como deve ser.
Não sei a fórmula para ensinar minha filha à aceitar a morte, nem se tem idade certa, mas não me parece que mentir ajude a sua compreensão, muito menos esconder a sua existência, se camuflar de imortal achando que nunca será encontrado não funciona também, um dia ela bate a porta, e o que dizer então?, que não está?, ela não acreditará e entrará.
Também não podemos transforma-la em uma tragédia premeditada, sofrer por antecedência é dobrar o sofrimento e não traz nenhuma luz. Talvez o melhor seja tratar a morte apenas pelo seu primeiro nome, não lhe dar nenhum adjetivo ou adorno, Ela é só a morte, não é o tudo, nem é o nada, só a morte, alguém que um dia chegará e com quem partiremos.
Espero que minha filha conserve a naturalidade, com que na sua tenra idade viu “gente morta” pela primeira vez, por ser muito jovem, deverá, se for seguida a ordem cronológica natural da vida, participar de muitos eventos de despedida na família, por isto, não tem um só dia da minha jornada profissional que não penso em, o que fazer para facilitar e ajudar neste momento. Não estou satisfeito nem realizado porque sei que ainda não encontrei a medida certa para cada situação, as variáveis são muitas, mas a vontade de conhecer é maior e vou seguir buscando.
Por hora faço aquilo que minha vivência de 43 anos ao lado de “gente morta” me ensinou: vivo todos os dias com a alegria do dia do aniversário e me deito todas as noites sabendo, que se despertar outra vez, será para ajudar a família de outrem, que ficou em silêncio na madrugada, o que importa é que, aconteça o que acontecer, estaremos sempre vivos e sempre mortos para alguém, e em algum plano do universo.
Se no dia da despedida minha filha chegar do meu lado e disser: ” tá bom papai”, saberei que minha missão foi completada, que ela ficará bem, e não existe maior recompensa nem melhor prêmio para um existência, do que morrer bem, deixando bem àqueles que amamos.
L.A.P.