Como lidar com a volta da Momo e o suicídio infantil

Pelo menos dois casos envolvendo crianças que atentaram contra as próprias vidas reacenderam, ao longo do último mês, debates a respeito da exposição de meninos e meninas a conteúdos que podem influenciá-los negativamente por meio da internet. Uma garota de 11 anos morreu depois de atirar contra a própria cabeça, no Mato Grosso do Sul. No Paraná, um garoto de 4 anos cortou os dois pulsos, superficialmente, com uma faca.

Apesar da distância geográfica, os casos podem ter em comum uma personagem já conhecida entre usuários das redes sociais, inclusive no Brasil: a Momo. Com olhos grandes, pele pálida e um sorriso sinistro, a figura é a representação de uma escultura japonesa: a mulher pássaro, cuja imagem passou a ser usada para ameaçar usuários do WhatsApp e de outras redes.

O “Desafio da Momo” foi relatado pela primeira vez em julho do ano passado, quando a Unidade de Investigação de Delitos Informáticos do Estado de Tabasco, no México, abriu uma investigação. “Vários usuários disseram que, ao enviar uma mensagem à Momo pelo celular, ela respondia com imagens violentas e agressivas. Há também quem afirme que ela respondeu as mensagens com ameaças”, explicou o departamento mexicano, em mensagem no Twitter.

Agora, cerca de oito meses após os primeiros relatos sobre a existência da Momo, a personagem reapareceu em vídeos destinados ao público infantil. A morte da garota de 11 anos, ocorrida em Mundo Novo (MS), e a mutilação do garoto, de 4, podem estar relacionadas ao viral (leia ao fim do texto). Em um vídeo de slime, massinha que faz sucesso entre a garotada, a Momo aparece ensinando, em inglês, o passo a passo de como os pequenos podem cortar os pulsos.

Uma professora compartilhou, por meio do Facebook, no último dia 14, imagens que mostram a filha abalada depois de ter acesso ao conteúdo. Ela fez um alerta e pediu para que pais e responsáveis fiquem atentos às crianças. Mas, até que ponto meninos e meninas são influenciados por virais como o Momo? É possível que eles possam, de fato, cometer suicídio mesmo tão novos?

O psicólogo e psicanalista mineiro Eduardo Lucas Andrade explica que as crianças podem absorver o que chama de “conhecimento entregue de modo covarde” caso não estejam amparadas e preparadas para eles. “O que influencia um jovem a atentar contra a própria vida está relacionado à forma como ele recebe aquele conteúdo e ao preparo para lidar com ele”, diz. “Se a criança está bem orientada, a tendência é de que ela não cai nesses discursos ou tenha meios para lidar com ele podendo contar com um adulto de confiança”, pondera.

Andrade ainda faz um paralelo entre o ataque ocorrido na escola pública de Suzano (SP), em que 10 pessoas morreram, e a atuação da personagem Momo para explicar a influência do viral sob as crianças. “Na questão da violência que estão querendo vincular diretamente aos jogos, como se essa fosse a causa, a problemática é bem maior. O jogo violento pode ser entendido, inclusive, como um meio simbólico de não se passar ao ato, de ficar na fantasia e não atuar”, explica.

“Mas depende de cada caso. Seria selvagem e irresponsável amarrar a causa do ataque aos jogos de forma direta. É fugir da responsabilidade. Nosso compromisso maior é pensar o campo da violência e trabalhar a questão social, repensando a educação. É um pouco disso que proponho no livro Psicanálise e Educação, repensar para surgir sujeito e não objetos carnais”, diz.

“O ataque ocorrido em Suzano e a Momo são diferentes, mas se entrelaçam na importância de se falar de tabus de forma responsável que orienta. São casos que se deparam com abandono e desemparo. Carece de fala guia. No caso da personagem, que ‘conversa’ com as vítimas, o diálogo promove uma identificação, uma ligação forte, uma influência sugestiva por meio da apologia à destruição de alguém fragilizado por estar só”, conta.

 “No caso da Momo, assim como o desafio da Baleia Azul, o que nos cabe é questionar a participação efetiva de um adulto, de um responsável, para fazer um contraponto ao discurso prejudicial que a criança pode absorver. Escutar e falar sobre. Temos um enorme problema quando a criança não pode falar de assuntos considerados tabus, como violência, sexualidade e morte, pois esta fica à mercê do outro. Já que falam tanto de armamento, vale dizermos que é preciso armar a criança com argumentos, com conhecimento e recursos simbólicos que a permita lidar com aquilo de maneira saudável”, pondera o especialista, que também é autor do livro infantil “Estrela: A bezerra que virou saudades”, em que fala sobre morte e prevenção ao suicídio.

Como entender, então, o suicídio infantil e abordar o assunto com as crianças? Andrade explica que o diálogo deve partir por meio da escuta. “As pessoas acreditavam que as crianças não tinham como cometer esse ato [suicídio], mas muitas vezes somos nós que relevamos e não escutamos a fragilidade dita pela criança. Muitos adultos não conseguem falar do tabu da morte, por exemplo, mas é necessário. É benéfico trabalhar a criança enquanto sujeito com autonomia de si mesmo e refletir e estar ao lado dela, não abandoná-la: ‘como escutar as crianças que falam de suicídio?’. Elas falam e precisamos ouvir”, afirma.

“A orientação básica é não deixar as crianças completamente soltas, monitorar e acompanhar os acessos dos filhos sem fazer isso de forma invasiva. É ver o jogo que está jogando, o vídeo que anda assistindo. Saber o que ela faz. Aprender como funciona. Escutar sobre. É preciso estar presente e participar efetivamente, orientar e mapear os riscos. Diante da identificação de algum problema maior, a ajuda profissional pode ser procurada para se trabalhar tanto com as crianças, mas também com os pais”, explica. “Enquanto há tempo é preciso buscar ajuda”, finaliza.

No Brasil, há um suicídio a cada 45 minutos. Os dados mundiais indicam que ocorre uma tentativa a cada três segundos e um suicídio a cada 40 segundos. Provocar o fim da própria vida está entre as principais causas das mortes entre jovens, de 15 a 29 anos, e também de crianças e adolescentes.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), o suicídio é a terceira causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos. É também a sétima causa de morte de crianças entre 10 e 14 anos de idade. O caminho, segundo o presidente da Associação Psiquiátrica da América Latina (Apal) e superintendente técnico da Associação Brasileira de Psiquiatria, Antônio Geraldo da Silva, é adotar medidas preventivas de ajuda e auxílio.

“É uma maneira de a gente salvar vidas porque 90% dos suicídios poderiam ser evitados se as pessoas tivessem acesso a tratamento e pudessem tratar a doença que leva ao suicídio”, afirmou o presidente da Apal à Agência Brasil, em 2018. Segundo o psiquiatra, em geral, a maior parte das pessoas que tentam colocar fim à vida sofre de algum tipo de transtorno mental. “Os estudos mostram que 100% de quem se suicida têm uma doença mental. Os trabalhos mostram isso. Nem 100% de quem pensa em suicídio têm doença mental, mas 100% de quem suicida têm transtorno mental”, afirmou.

Reações – Além de levantar debates sobre suicídio na infância, a presença da Momo em vídeos para crianças provocou reações diversas. O Ministério Público da Bahia (MP-BA) notificou o Google e o WhatsApp para que as empresas removam conteúdos relacionados. Já o YouTube divulgou um comunicado, por meio do Twitter, em que diz não ter “nenhum vídeo que promova um desafio Momo no YouTube Kids” e pediu para que usuários do site denunciem.

Fonte: BHAS