Cemitérios nos EUA viram opção de lazer com cinema, música e até degustação de vinhos

O Congressional Cemetery, em Washington, promove sessões de cinema ao ar livre batizadas de Cinematery.

Aulas de ioga, clube de leitura, projeção de filmes ao ar livre, passeios noturnos para explorar monumentos. A programação é semelhante à de muitos parques no verão americano, mas no Congressional Cemetery, cemitério histórico de Washington, as atividades são realizadas em meio a túmulos de políticos famosos e heróis da Guerra Civil dos Estados Unidos.

Seguindo uma tendência crescente em cemitérios de todo o país, o Congressional Cemetery oferece uma agenda diversificada de eventos que, segundo seu presidente, Paul Williams, atraem até 45 mil pessoas por ano.

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Cemitérios nos EUA viram opção de lazer com cinema, música e até degustação de vinhos (Foto: Congressional Cemetery)

Na última sexta-feira, a sessão de cinema, batizada de Cinematery, exibiu o clássico Cantando na Chuva. Terça-feira é dia de “Yoga Mortis”, com aulas comandadas pela professora de ioga Jessica Woodburn.

A cada dois meses, um clube do livro chamado Tombs and Tomes (Túmulos e Tomos) se reúne na capela do cemitério para discutir, principalmente, obras com temas macabros.

Aos sábados, há passeios guiados, e na primeira quinta-feira de cada mês, uma caminhada noturna. O ingresso, a US$ 10 (cerca de R$ 32), dá direito a uma taça de vinho.

Todos os anos, em outubro, uma das principais atrações é a Dead Man’s Run, uma corrida de 5 km em que os participantes, muitos deles fantasiados, atravessam o cemitério ao som de música. O preço da inscrição, US$ 40 (cerca de R$ 130), inclui uma camiseta e uma cerveja.

“Nós incentivamos as pessoas a visitarem nosso cemitério, caminhar por aqui, ler as lápides, divertir-se. Não precisa ser um lugar solene e triste”, disse Williams à BBC Brasil.
“Muitos se esquecem que, há cem anos ou mais, as pessoas usavam os cemitérios como parques, onde passavam o dia, faziam piqueniques, se reuniam com amigos, mesmo se não tivessem familiares enterrados no local”.

Tendência

O Congressional Cemetery faz parte de um grupo cada vez maior de cemitérios americanos que oferecem mais do que sepultamentos e cerimônias fúnebres.

O Hollywood Forever, em Los Angeles, promove sessões de cinema desde 2002, além de concertos musicais e outros eventos.
Oakland (Atlanta), Green-Wood (Brooklyn, em Nova York), Spring Grove (Cincinnati), Laurel Hill (Filadélfia) e Mountain Grove (Bridgeport) são outros cemitérios históricos que têm atraído milhares visitantes com programação cultural o ano inteiro.

No Holy Sepulchre, em Hayward, na Califórnia, há degustação de vinhos premiados produzidos por videiras plantadas no próprio cemitério.
Programação inclui clube de leitura e atrai cerca de 45 mil visitantes por ano

“Particularmente em grandes cidades, onde há cemitérios especialmente grandiosos, esse tipo de programação vem crescendo nos últimos 10 ou 15 anos”, disse à BBC Brasil o professor de história da arquitetura Keith Eggener, da Universidade de Oregon, autor de um livro sobre a evolução dos cemitérios americanos.

Custos

Essa transformação é impulsionada, principalmente, pela necessidade de fechar as contas em um momento em que o número de novos sepultamentos já não é suficiente para cobrir os custos de preservação, principalmente no caso de cemitérios históricos.

“Muitos já estão lotados, não têm mais como arrecadar fundos com a venda de espaço. Precisam ser criativos para cobrir os custos de manutenção”, salienta Williams, presidente do Congressional Cemetery.

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A programação inclui clube de leitura e atrai cerca de 45 mil visitantes ao ano (Foto: Congressional Cemetery)

Sua trajetória ilustra o desafio enfrentado pelos cemitérios históricos. Fundado em 1807, o Congressional Cemetery abriga os restos mortais de 67 mil pessoas, entre elas figuras ilustres como o primeiro diretor do FBI (a polícia federal americana), J. Edgar Hoover, congressistas, juízes da Suprema Corte e veteranos de guerra.

Apesar dos residentes famosos, porém, com o tempo o cemitério foi entrando em decadência.

“Vinte e cinco anos atrás, estava quase completamente abandonado, com grama na altura dos ombros, pessoas morando no local, uso de drogas e prostituição”, relembra Williams, que assumiu a presidência do local em 2012.

Passeio de cães

A transformação começou a partir de 1997, por iniciativa da própria comunidade. Moradores da área que costumavam levar seus cães para passear no cemitério passaram a se organizar e arrecadar dinheiro para cortar a grama e outros reparos.

O programa cresceu e hoje inclui 750 cães e uma lista de espera que pode chegar a três anos. Os participantes pagam taxa anual de US$ 225 (cerca de R$ 739), mais US$ 50 (R$ 164) por animal, para que seus cães possam passear livremente pelo cemitério.

Além da injeção de aproximadamente US$ 210 mil (R$ 690 mil) por ano nos cofres do cemitério, a presença dos cães e seus donos é descrita como uma “patrulha” que ajuda a manter o local livre de vândalos.

Segundo Williams, o programa de passeio de cães e as outras atividades promovidas pelo Congressional Cemetery rendem em torno de US$ 400 mil (R$ 1,3 milhão) por ano, quase metade do orçamento anual de US$ 1 milhão (R$ 3,28 milhões).

Retorno

No entando, para Eggener, a motivação econômica não é a única explicação para a transformação desses cemitérios.

“Acho que também é por orgulho, reconhecimento do valor histórico desses locais e desejo de mantê-los como parte vital da comunidade”, observa.

Eggener ressalta que muitas vezes os cemitérios são a melhor fatia de terra em determinadas vizinhanças, o que faz com que sejam usados como parques, como ocorria no século 19.
Outro fator é o que ele considera uma cultura atual de nostalgia e de fascinação com o passado.

“As pessoas estão retornando aos cemitérios”, diz. “No século 19, não havia muitas opções de lazer, e as pessoas tinham orgulho e ficavam muito felizes de poder passear nos cemitérios. É bom lembrar que era uma época anterior ao surgimento de parques públicos, museus ou jardins botânicos nos Estados Unidos.”

As atividades incluíam passeios de carruagens, piqueniques e até caça de pássaros. “Com o tempo, as associações de cemitérios passaram a publicar guias para orientar os visitantes e também estabelecer regras sobre o tipo de atividade permitida”, revela Eggener.

Respeito

O objetivo dessas regras, diz Eggener, era manter um equilíbrio entre atrair visitantes e garantir um ambiente de respeito aos mortos.

Essa continua sendo uma preocupação atual. No ano passado, quando o Congressional Cemetery começou a exibir filmes, dois leitores protestaram em carta ao jornal The Washington Post.

“Não podemos acreditar que alguém possa promover o uso de um cemitério para projeção de filmes. Será que perdemos todo o senso de decência e respeito por nossas famílias e ancestrais a ponto de macular um lugar tão sagrado?”, questionava a carta.

No entanto, segundo Williams, “é muito raro que alguém critique algum dos nossos eventos”. Ele agrega que a programação é planejada por uma equipe de seis funcionários, com cuidado para que não seja ofensiva.

“Se não fosse por esses eventos, nosso cemitério não estaria como está hoje, com a grama cortada, os monumentos preservados, um local seguro”, afirma.
Williams destaca que o cemitério ainda permanece ativo e alguns dos visitantes acabam se interessando em adquirir lotes para serem sepultados lá.

Comunidade

Para Eggener, cabe a cada comunidade, incluindo visitantes, pessoas com familiares sepultados e administradores, decidir como usar os cemitérios.

“Sempre haverá alguém insatisfeito com qualquer que seja a solução”, aponta.

Eggener salienta que, quando todos os membros da família já morreram, quando se chega à quarta ou quinta geração, muitos túmulos acabam abandonados, já que ninguém mais se lembra de quem está sepultado lá.

“Temos essas grandes fatias de terra, no meio de grandes cidades, caindo em abandono, muitas vezes se transformando em locais perigosos. Então, se for possível encontrar uma maneira de manter esses lugares, uma maneira que seja benéfica para os vivos, é positivo”, avalia Eggener.

“Isso é algo que devemos ter em mente: no fim das contas, os cemitérios são tanto para os vivos quanto para os mortos.”